quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A moça de piercing


  Francisco sentou-se em sua poltrona. Era uma curta viagem, seriam apenas 40 minutos ligando uma cidade a outra. Retirou de sua mochila um grosso volume de A República de Platão, Faltavam 5 minutos para o ônibus sair. Ao ouvir o barulho do motor do ônibus, entra uma moça no ônibus, linda, completamente linda.
   Ela se senta ao lado de Francisco, diz "Boa tarde", Francisco lhe retribui a saudação. A moça coloca os fones, inclina a sua poltrona e fecha os olhos.
   Francisco a olha para a moça de cima até os pés. Logo, já pode supor o distinto leitor, Platão deixou de ser o objeto das atenções de Francisco. Começa ele a pensar quem seria aquela garota, o que fazia da vida e até mesmo como ela seria na cama.
    Em seus devaneios, Francisco vê um piercing no nariz da moça. Ele nunca em sua vida havia namorado, ficado ou transado com uma moça de piercing. Mas algo ele sabia por intuição. "Mulheres com piercing são um estouro".
    Perdõe caro leitor pelas gírias e pensamentos conservadores de Francisco, mas ele tinha mais de 50 anos e era um homem profundamente conservador, embora nunca tenha casado e nem tido filhos. As gírias de Francisco e seu entedimento do mundo torna uma conversa entre ele e um adolescente completamente ineficaz.
    Voltando à narrativa.
    Os devaneios de Francisco começam a tomar a sua mente. Várias perguntas começaram a intrigá-lo, primeiramente se ela só teria aquele piercing ou se por acaso ela teria outros e onde seriam esse piercings, em segundo lugar ele começou a imaginar o que essa garota estaria ouvindo em seu IPOD, o que ela fazia da vida e principalmente se ela honrava a fama das mulheres de piercing.
    Ele pensava, pensava e A República de Platão ia ficando de lado.
    De repente a moça de piercing acorda e olha para Franciso.
   - Olá estranho! - disse a moça imitando uma fala da Natalie Portman no filme Close.
   - Oi - responde Francisco monossilábico.
   - Você gosta de Platão?
   - Sim - agora além de monossilábico Francisco treme e começa a suar frio.
   - Adoro esse livro, embora discorde profundamente do livro X, penso na poesia de outra maneira ... - e vai discorrendo sobre A República, mostrando entender do assunto.
   - Pera aê -  o mundo de Francisco parou para ele descer - Você lê livros?
   - E por que não leria? - pergunta a moça com espanto.
   - O que você está ouvindo? - Francisco continua o questionário.
   - Bom, você é estranho mesmo. Estou ouvindo a 8ª sinfonia de Mahler segundo movimento.
   - Hã?
   - O que eu tenho de estranho?
   - Nada - responde Francisco com a mente dando um nó - Mas então o que mais você gosta de ler?
   - Posso declamar Fernando Pessoa para você!
   - Sério?
   - Vou descer daqui antes da rodoviária e dormir em um motel na estrada, posso te ensinar "O Guardador de Rebanhos" se você quiser me acompanhar.
   Francisco emudeceu,  acompanhou a moça e teve a melhor noite de sua vida.
   Muitas  perguntas de Francisco foram respondidas naquela noite, principalmente a sua dúvida sobre os piercings, ele descobriu mais dois um no umbigo e outro para aguçar a imaginação do leitor.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Para ser popular é indispensável ser medíocre

Li essa frase do Oscar Wilde e pensei, "taí, por isso minha carreira não decolou ainda!".
Resposta fácil para uma pergunta difícil.
Não que Wilde esteja errado. Concordo com ele, todo gênio possui uma série de inimigos declarados. Todo gênio possui pessoas que o odeiam, os medíocres em contrapartida estão na Academia Brasileira de Letras.
Bom, mas será que todo popular é medíocre? Nem sempre, todo aquele que consegue tocar o coração das pessoas é genial, mas qual é o limiar da mediocridade popularesca ao gênio que alcança o coração das pessoas?
Definitivamente não sei. A fórmula do sucesso é complexa e poucos são as que a encontram sem ser medíocre. No fundo levamos tudo muito a sério e nada sabemos sobre nós mesmos.
Oscar Wilde também dizia, "A vida é muito importante para ser levada a sério". No fim das contas Wilde está certo de novo.
Penso que o segredo talvez seja continuar escrevendo sem muitas pretensões afinal o próprio Wilde disse:
"A ambição é o último recurso do fracassado."

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Como se cria um mito?


A afirmação de Boni que houve de sua parte apoio na construção da imagem de Collor no debate de 89 apenas disse o que todos sabiam. Fato é que tanto Lula quanto Collor se enfrentaram de forma altamente feroz e até mesmo vergonhosa ao nosso país. Além do embate político era um momento para se pensar qual tipo de país iríamos querer.
Por um lado, um jovem político nordestino com um discurso a favor dos pobres e um forte apelo nacionalista, do outro um sindicalista que com grande apoio de artistas e intelectuais aparece sendo a solução de todos os problemas do país.
Passa o tempo e todos sabem quem é quem. Mas minha reflexão se repousa na idéia da construção dos mitos Collor e Lula, um morto e o outro mais vivo dos que nunca. Como se construíram esses mitos?
Ambos se colocaram como heróis do povo, ambos prometiam resolver os problemas do país em poucos dias de mandato, ambos se portavam como se tivessem todas as respostas para as perguntas às quais o brasileiro tinha. Ambos eram pais dos pobres.
Porém, o alagoano Collor era belo, atlético e com uma retórica irrepreensível. Enquanto o sindicalista lembrava os guerrilheiros comunistas cubanos, lembrava a pobreza que tanto assolava ao país, visto que, além de aparência, seu linguajar bretão fazia o povo temer que ele fosse um louco que poderia fazer muita bobagem como presidente do Brasil.
Lula mudou, seu discurso caminhou para o centro, desagradou muitos esquerdistas, mais ganhou a classe média e com seu grande carisma conseguiu conduzir uma campanha vitoriosa anos depois.
 Recebeu um país que poderia dar certo, o mundo crescendo economicamente e várias oportunidades lhe caíram ao colo. Saiu da presidência mais forte que qualquer um de seus antecessores, elegeu sua sucessora, conseguiu respeito de vários líderes mundo afora e é tido por muitos brasileiros como o melhor presidente da história.
Enquanto isto, algo estranho, acontece no Brasil. Collor, o mito desconstruído, a ilusão perdida do povo aquele ao qual o povo brasileiro não confiaria nunca mais e que foi o primeiro presidente da história do Brasil a sofrer um impeachemant, se elege Senador pelas Alagoas, estado que além dele possui lideranças antagônicas, como Renan Calheiros e Heloísa Helena.
Esse Senador torna-se forte dentro da câmara, assumindo a comissão de infraestrutura, sendo importante aliado do Presidente petista para aprovação das obras do PAC (programa de aceleração do crescimento).
Lula e Collor contam muito sobre o que é o Brasil. 

sábado, 10 de dezembro de 2011

Uma música eterna

My Way

Meu jeito

And now, the end is near;
E agora, o fim está próximo
 
And so I face the final curtain.
Então eu encaro o desafio final 
 
My friend, I'll say it clear,
Meu amigo, Eu vou falar claro
 
I'll state my case, of which I'm certain.
Eu irei expor meu caso, do qual tenho certeza





I've lived a life that's full.
Eu vivi uma vida que foi cheia

I've traveled each and ev'ry highway;

Eu viajei por cada e todas as rodovias
 
But more, much more than this,
E mais, muito mais do que isso 
 
I did it my way.
Eu fiz do meu jeito





Regrets, I've had a few;
Arrependimentos, eu tive alguns 
 
But then again, too few to mention.
Mas então de novo, tão poucos para mencionar 
 
I did what I had to do
Eu fiz o que tinha que fazer 
 
And saw it through without exemption.
E eu vi tudo sem exceção







I planned each charted course;
Eu planejei cada caminho do mapa 
 
Each careful step along the byway,
Cada passo cuidadosamente no correr do atalho 
 
But more, much more than this,
Oh mais, muito mais que isso 
 
I did it my way.
Eu fiz do meu jeito 
 
 

Yes, there were times, I'm sure you knew
Sim, teve horas que eu tinha certeza 
 
When I bit off more than I could chew.
Quando eu mordi mais que eu podia mastigar 
 
But through it all, when there was doubt,
Mas entretanto, quando havia dúvidas 
 
I ate it up and spit it out.
Eu engolie cuspi fora 
 
I faced it all and I stood tall;
Eu encarei e continuei grande 
 
And did it my way.
E fiz do meu jeito 
 
 

I've loved, I've laughed and cried.
Eu amei, eu ri e chorei 
 
I've had my fill; my share of losing.
Tive minhas falhas. minha parte de derrotas 
 
And now, as tears subside,
E agora, como as lágrimas descem 
 
I find it all so amusing.
Eu acho tudo tão divertido 
 
 

To think I did all that;
De pensar que eu fiz tudo 
 
And may I say - not in a shy way,
E talvez eu diga, não de uma maneira tímida 
 
"No, oh no not me,
Oh não. não eu 
 
I did it my way".
Eu fiz do meu jeito 
 
 

For what is a man, what has he got?
E pra que é um homem, o que ele tem 
 
If not himself, then he has naught.
Se não ele mesmo, então ele não tem nada 
 
To say the things he truly feels;
Para dizer que as coisas que ele sente de verdade 
 
And not the words of one who kneels.
E não as palavras que ele deveria revelar 
 
The record shows I took the blows -
Os registros mostram que eu recebi as desgraças 
 
And did it my way!
E fiz do meu jeito



Yes, it was my way!!!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

As pessoas pensam que os cientistas...

Autor: Wittgenstein

AS PESSOAS PENSAM QUE OS CIENTISTAS EXISTEM PARA INSTRUÍ-LAS E QUE OS ARTISTAS - OS POETAS, OS ESCRITORES, OS MÚSICOS, OS DRAMATURGOS - EXISTEM SÓ PARA LHES DAR PRAZER. NÃO OCORRE ÀS PESSOAS QUE TAMBÉM OS ARTISTAS TÊM MUITA COISA PARA LHES ENSINAR.

Sobre o autor:
Wittgenstein (1889 — 1951) foi um filósofo austríaco, naturalizado britânico. Foi um dos principais atores da "virada linguística" na filosofia do século XX. Suas principais contribuições foram feitas nos campos da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da matemática e filosofia da mente.

COMO EXPLICAR QUE O HOMEM...

Autor: Dostoiévski


COMO EXPLICAR QUE O HOMEM, UM ANIMAL TÃO PREDOMINANTEMENTE CONSTRUTIVO, SEJA TÃO APAIXONADAMENTE PROPENSO À DESTRUIÇÃO? TALVEZ PORQUE SEJA UMA CRIATURA VOLÚVEL, DE REPUTAÇÃO DUVIDOSA. OU TALVEZ PORQUE SEU ÚNICO PROPÓSITO NA VIDA SEJA PERSEGUIR UM OBJETIVO, ALGO QUE, AFINAL, AO SER ATINGIDO, NÃO MAIS É VIDA, MAS O PRINCÍPIO DA MORTE.   

Sobre o autor:
Fiódor Dostoiévski nasceu em 11 de Novembro de 1821 na cidade de  São Petersburgo,O escritor é considerado um dos maiores romancistas da literatura russa e um dos mais inovadores artistas de todos os tempos.Sua obra explora a autodestruição, a humilhação e o assassinato, além de analisar estados patológicos que levam ao suicídio, à loucura e ao homicídio.

O Tempo

Autor: Mário Quintana

A vida são dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê não sabemos mais por onde andam nossos amigos...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casaca dourada e inútil das horas...
Eu seguraria todos os meus amigos, que Já não sei como e onde eles estão e diria: vocês são extremamente importantes para mim.
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
Dessa forma eu digo, não deixe de fazer algo que gosta devido a falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

Sobre o autor: Mário Quintana foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro. Na década de 40, Quintana é alvo de elogios dos maiores intelectuais da época e recebe uma indicação para a Academia Brasileira de Letras, que nunca se concretizou. Sobre isso ele compõe, com seu afamado bom humor, o conhecido Poeminha do Contra.

Escolho meus amigos pela pupila

Autor: Oscar Wilde

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Sobre o autor:
Escritor irlandês, nasceu em 16 de outubro de 1854 na cidade de Dublin. Wilde escreveu para todos as formas de expressão em palavras, embora tenha sido menos conhecido em algumas delas. Em seu único romance, O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde trata da arte, da vaidade e das manipulações humanas e é considerado por muitos de seus leitores, como a sua maior obra-prima.

Ó infelizes mortais...

Autor: Voltaire

Ó infelizes mortais, ó terra deplorável
Ó ajuntamento assustador de seres humanos! Eterna diversão de inúteis dores!
Filósofos alienados que proclamam:-tudo vai bem-. Venham contemplar essas ruínas horrendas
esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas, essas mulheres e essas crianças
amontoadas sob mármores partidos, seus membros espalhados;
Cem mil desafortunados que a terra devora, que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando
enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro, no horror de tormentas findando seus dias!
Diante dos gritos de suas vozes moribundas, do horror de suas cinzas ainda crepitantes, vocês dirão;
-é a conseqüência de leis eternas que um Deus livre e bom resolveu aplicar?!-
Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas: -Deus vingou-se,e a morte deles é o preço de seus crimes?!-
Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas e sangrentas sobre o seio materno? Lisboa,
que não mais existe, teria mais vícios que Londres, que Paris, submersas em delícias?
Lisboa está destruída e dança-se em Paris.
espectadores tranqüilos, intrépidos espíritos, contemplando a desgraça desses moribundos,
 vocês procuram – em paz – as causas do desastre:
-Tudo vai bem – dizem vocês – e tudo é necessário-
Por acaso o universo, sem esse abismo, infernal, sem submergir Lisboa, estava sendo pior?

Quando a tecnologia e o dinheiro...

Autor: Martin Heidegger

Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um esportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, - então, justamente então – reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como... Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo... O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas.

Sobre o autor: Martin Heidegger
Filosofo alemão que é seguramente um dos pensadores fundamentais século XX. Inscreveu-se no partido Nazi (NSDAP) em 1 de Maio de 1933, tendo posteriormente sido nomeado reitor da Universidade de Freiburg. Porém, pouco depois se demitiu do cargo de reitor, se colocando contra a perseguição, de cunho anti-semita, a professores da universidade.

O Caráter Destrutivo

Autor: Walter Benjamin

Destruir é jovem e sereno. Destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas de nossa própria idadem, reanima. O que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, o reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quando testa o quanto ele merece ser destruído. Este é o grande vínculo que envolve, na mesma atmosfera, tudo o que existe. É uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia.

Sobre o autor: Walter Benjamin
Walter Benedix Schönflies Benjamin nasceu em Berlim,em 15 de julho de 1892 e foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão.
O seu trabalho, combinando ideias aparentemente antagónicas do idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo original para a teoria estética.

Parem de jogar cadáveres na minha porta

Autor: Affonso Romando de Sant´anna


Parem de jogar cadáveres na minha porta

Autor: Affonso Romando de Sant´anna
Fabricio Altran
29/07/11 18:50 - Atualizado em 29/07/11 18:50
Parem de jogar cadáveres na minha porta. Tenho que sair - respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra a ouvir o que diz a água.
Daquelas fontes e acompanhar o desenho imperturbável dos Zeliges. Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto e de semear pregos por onde passo. Estou em Essauíra, na costa do Marrocos, olhando o mar. Ou em Minas, contemplando as montanhas ao redor de diamantina. Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra e abocanhar meu texto. Estou tornando a Delfos naquela manhã de neblinas, ouvindo.
O que me diz o oráculo em surdina. Ainda agora embarquei para o palácio Topkapi, frente ao Bósforo, quando tentaram me esfaquear na esquina. Jamais permitirei que quebrem as porcelanas e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio. Estou nos campos da Toscana, onde a gigante mão de Deus penteia os montes.
E minha alma se sente pequenina. Dei de mão comendas e insígnias.
Não tenho mais que na praça erguer protestos e distribuir esmolas não é mais a minha sina. Acabo de entrar no pavilhão da harmonia preservada e me liberto - na cidade proibida na China. Não adianta o clamor de burocráticos compromissos nem vossa ira. Tenho oito anos,
saí para nadar naquele açude atrás dos morros e vou pescar a minha única e inesquecível traíra. Parem de jogar cadáveres na minha porta, na minha mesa, na minha cama dificultando que alcance o corpo da mulher que amo. Afastem de mim o meu, o vosso cálice. Impossível ficar no tempo que me coube. O tempo todo.
Preciso repousar num campo de tulipas reaprendendo a ver o que era o mundo antes de, como um sísifo moderno, desesperado, julgar que o tinha que carregar.

Sobre o autor: Affonso Romando de Sant´anna
Natural de Belo Horizonte, participou ativamente de movimentos que transformaram a poesia brasileira, além de movimentos políticos e sociais que marcaram o país.

Receita para arrancar poemas presos

Autor: Viviane Mosé

A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos.

Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras calcificadas,

Poemas sem vazão.

Mesmo cravos pretos, espinhas e cabelo encravado.

Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema. Mas não.

Pessoas às vezes adoecem da razão

De gostar de palavra presa.

Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.

Lágrima é dor derretida. Dor endurecida é tumor.

Lágrima é alegria derretida. Alegria endurecida é tumor.

Lágrima é raiva derretida. Raiva endurecida é tumor.

Lágrima é pessoa derretida. Pessoa endurecida é tumor.

Tempo endurecido é tumor. Tempo derretido é poema.

Sobre o autor: Viviane Mosé
Psicóloga e psicanalista. Escreveu e apresentou, em 2005 e 2006, o quadro Ser ou não ser, no Fantástico, onde trazia temas de filosofia para uma linguagem cotidiana.

Vinte anos de teatro...

Autor: Jorge Luis Borges

 Vinte anos de teatro e alucinação. Até que um dia vendeu tudo e regressou a seu rio de infância e às árvores de sua aldeia natal.
Foi vencido, o artista, pelo cansaço e pelo horror de ser tantos reis assassinados e tantos amantes que agonizam. Finalmente liberto das ilusões mitológicas e vozes latinas de seus textos, era preciso agora ser alguém, antes ou depois de morrer, não se sabe. Postou-se diante de deus e disse: “eu, que tantos homens fui em vão, quero ser alguém, quero ser eu! E a voz solene de deus lhe respondeu: “nem eu mesmo sou eu. Sonhei um mundo como tu, shakespeare, sonhaste em tua obra. E entre as formas de meu sonho estás tu, que como eu, és muitos... E ninguém! 

Sobre o autor: Jorge Luis Borges nasceu em uma família de classe média com boa educação. Foi um ávido leitor de enciclopédias. Sua obra se destaca por abordar temáticas como filosofia (e seus desdobramentos matemáticos), metafísica, mitologia e teologia, em narrativas fantásticas onde figuram os "delírios do racional", expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos.

Como é por dentro outra pessoa.

Autor: Fernando Pessoa

Como é por dentro outra pessoa? Quem é que o saberá sonhar? A alma de outrem é outro universo, com que não há comunicação possível, nem há verdadeiro entendimento. Nada sabemos da alma, senão da nossa. As almas dos outros são olhares, são gestos, são palavras, supondo-se qualquer semelhança no fundo. Entendemo-nos porque nos ignoramos. A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver.

Sobre o autor: Fernando Pessoa (1888 - 1935) nasceu em Lisboa.
Considerado um dos mais importantes poetas modernistas.
Criou heterônimos famosos como Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

Eu sou Mefistófeles...

Autor: Goethe

Eu sou Mefistófeles. Mefistófoles!
É, o diabo e todos vocês são Faustos. Faustos, os que vendem a alma ao diabo.
Tudo é vaidade nesse mundo vão, tudo é tristeza, tudo é pó é nada, quem acredita em sonhos é porque já tem a alma morta. O mal da vida cabe entre nossos braços e abraços mas eu não sou exatamente o que vocês pensam, eu não sou exatamente o que as igrejas pensam, as igrejas abobinam me.
Deus me criou para que eu o imitasse de noite. Ele é o sol eu sou a lua, a minha luz paira tudo quanto é futil, margens de rio, pantanos, sombras.
Quantas vezes vocês viram passar uma figura velada, rápida?
Figura que te daria toda a felicidade, figura que te beijaria indeferidamente.
Era eu, sou eu. Eu sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar.
Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses.
Quantas vezes Deus me disse citando João Cabral de Melo Neto: "Ai de mim, ai de mim." Quem sou eu?
Quantas vezes Deus me disse: "Meu irmão, eu não sei quem eu sou".
Senhores venham até mim, venham até mim, venham!. Eu os deixarem em rodopios fascinantes, uivos castéus e nas trevas, nas trevas vocês veram todo o explendor.
De que adianta vocês viverem em casa como vocês vivem, de que adianta pagar as contas no fim do mês, religiosamante, as contas de luz, gás, telefone, condomínio, IPTU.
Todos vocês são Faustos. Venham, eu os arrastarei por uma vida bem selvagem, através de uma rasa e vã mediocridade que é o que vocês merecem.
As suas bem humanas insasiabilidade teram lábios, manjares, bebidas... É difícil encontrar quem não queira vender a sua alma ao diabo.
As últimas palavras de Goethe, ao morrer, foram: "Luz... Luz, mais luz!"


Sobre o autor:
Goethe (1749-1832) foi um escritor alemão e pensador que também incursionou pelo campo da ciência. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.

Eu não concordo com nenhuma palavra do que dizeis...

Autor: Voltaire

Eu não concordo com nenhuma palavra do que dizeis, mas eu defenderei até a morte o seu direito de dizê-la.

Sobre o autor:
François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, foi um escritor, ensaísta e filósofo iluminista francês, conhecido pela sua perspicácia e espirituosidade na defesa das liberdades civis, inclusive liberdade religiosa e livre comércio.

Os pessimistas têm sempre razão que perderam...

Autor: Goethe

Os pessimistas têm sempre razão que perderam.
Os otimistas têm sempre razão que ainda não conquistaram.
Todos temos a vocação de cartomante.
É preciso acreditar nas cartas que possam revelar melhor um futuro no qual a gente possa não acreditar muito.

Sobre o autor:
Goethe (1749-1832) foi um escritor alemão e pensador que também incursionou pelo campo da ciência. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.

Ei-los em pé

Autor: Jean-Paul Sartre

O que vocês esperavam que acontecesse quando tiraram a mordaça que tapava essas bocas negras? Esperavam que elas lhes lançassem louvores? E essas cabeças que seus avós e seus pais haviam dobrado à força até o chão?
O que esperavam? Que se reerguessem com adoração nos olhos?
Ei-los em pé. Homens que nos olham. Ei-los em pé. Faço votos para que vocês sintam como eu a comoção de ser visto.
Hoje, esses homens pretos nos miram e nosso olhar reentra em nossos olhos. Tochas negras iluminam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenas luminárias balançadas pelo vento.

Sobre o autor:
Jean-Paul Sartre (1905-1980), francês, iniciou na literatura clássica desde cedo. Fez seus estudos secundários em Paris, no Lycée Henri IV. Despertou seu interesse pela Filosofia, influenciado pela obra de Henry Bergson. Era um artista militante, e apoiou causas políticas de esquerda com a sua vida e a sua obra.

Trecho de "Dois Excertos de Odes"

Autor: Fernando Pessoa

Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio.
(...)
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
(...)
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Das Tristezas dos Desprezados.
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos e Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente, 
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando em tudo...
(...)
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...

Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935) nasceu em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas modernistas. Criou heterônimos famosos como Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

Trecho de Tabacaria

Autor: Fernando Pessoa

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis.

Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935) nasceu em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas modernistas. Criou heterônimos famosos como Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

Trecho de “Mistério do Mundo”

Autor: Fernando Pessoa

Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto
Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo
O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.
Oh vulgar, oh feliz!  Quem sonha mais,
Eu ou tu?  Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo
 
Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888-1935) é considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e o seu valor é comparado ao de Camões. Durante sua discreta vida, atuou no Jornalismo, na Publicidade, no Comércio e, principalmente, na Literatura. Como poeta, desdobrou-se em diversas personagens conhecidas como heterônimos, em torno das quais se movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e sua obra.

Aniversário

Autor: Fernando Pessoa

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
(...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
 

Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888-1935) é considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e o seu valor é comparado ao de Camões. Durante sua discreta vida, atuou no Jornalismo, na Publicidade, no Comércio e, principalmente, na Literatura. Como poeta, desdobrou-se em diversas personagens conhecidas como heterônimos, em torno das quais se movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e sua obra.

Madrigal Melancólica

Autor: Manuel Bandeira

O que eu adoro em ti
Não é sua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Mas é o espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é tua ciência
Do coração dos homens e das coisas
O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada como teu próprio pensamento
Graça que perturba e que satisfaz
O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza
O que adoro em ti lastima-me e consola-me
O que eu adoro em ti é a vida!

Sobre o autor:
Manuel Bandeira (1886-1968) foi um poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.
Nascido no estado de Pernambuco, ele fez parte da geração de 22 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema “Os Sapos” o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922.

Argumentum Ornithologicum

Autor: Jorge Luís Borges

Eu fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros eu vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Eu tenho certeza de que vi menos de dez pássaros e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Eu vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, etc. Esse número é inconcebível, mas é inteiro; Minha opinião ornitológica, Deus existe.

Sobre o autor:
Jorge Luís Borges (1899-1986) nasceu em Buenos Aires, Argentina. Foi um escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino mundialmente conhecido por seus contos e histórias curtas.

Não tenhas nada nas mãos!

Autor: Fernando Pessoa

Não tenhas nada nas mãos
nem uma memória na alma,
que quando te puserem
nas mãos o óbolo último,
ao abrirem-te as mãos
nada te cairá.
Que trono te querem dar
que átropos to não tire?
Que louros que não fanem
nos arbítrios de minos?
Que horas que te não tornem
da estatura da sombra.
Que serás quando fores
na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol.
Abdica.
E sê rei de ti próprio.
 

Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935) nasceu em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas modernistas. Criou heterônimos famosos como Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

Corai-me de Rosas!

Autor: Fernando Pessoa

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade de rosas
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se tão cedo!
Coroai-me de rosas e de folhas breves.
E basta.

Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935) nasceu em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas modernistas. Criou heterônimos famosos como Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

Meus Amigos

Autor: Jorge Luis Borges

Meus amigos, por aqui também passou a guerra. Digo “também” porque a sentença pode ser apliacada a quase todos os lugares do planeta.
Ao lado do sexo e dos sonhos, o homem matar o homem é um dos hábitos mais antigos de nossa singular espécie.
Aqui, na América do Sul, sentimos nas muralhas e nas casas, de maneira inequívoca, a presença desse passado.
Não importam, como continuarão a não importar, as datas e os nomes próprios.
Todos seremos parte do esquecimento, a tênue substância de que é feito o universo.
 
Sobre o autor:
Jorge Luis Borges é argentino, mas sua literatura teve forte influência dos autores ingleses. Nas poesias e ensaios, a biblioteca de seu pai é uma referência constante.

O guardador de rebanhos

Autor: Fernando Pessoa

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo a roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte ...
 

Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935).
A versão na íntegra deste trecho pode ser encontrada nas obras completas de Alberto Caieiro - cap. VIII ou na sua "Antologia Poética" (Lisboa : R.B.A. Editores, 1994, p.124-129).

Se todos os rios são doces...

Autor: Pablo Neruda

Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?
Como sabem as estações do ano que devem trocar de camisa?
Por que são tão lentas no inverno e tão agitadas depois?
E como as raízes sabem que devem alçar-se até a luz e saudar o ar com tantas flores e cores?
É sempre a mesma primavera que repete seu papel?
E o outono?... ele chega legalmente ou é uma estação clandestina?

Sobre o autor:
O poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), foi um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX, e cônsul do Chile na Espanha e no México. Publicou seus primeiros poemas no periódico regional, A Manhã, na cidade de Temuco.

Se o olho não fosse ensolarado...

Autor: Goethe

Se o olho não fosse ensolarado não poderia avistar o sol. Nem mais nada!... 
O órgão pelo qual compreendi o mundo é o olho!

Sobre o autor:
Goethe (1749-1832) foi um escritor alemão e pensador que também incursionou pelo campo da ciência. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.

Explicações da eternidade

Autor: José Luís Peixoto

Devagar, o tempo transforma tudo em tempo
O ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo
Os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo
Mas por si só, o tempo não é nada
A idade de nada é nada
A eternidade não existe

Sobre o autor:
José Luís Peixoto é um escritor e dramaturgo português.
Tem publicado poesia e prosa. Seus romances podem ser encontrados em países,como, França, Itália, Espanha, Holanda, Finlândia, República Checa, Polônia, entre outros.
Peixoto recebeu várias vezes o prêmio Jovens Criadores, e em 2001 ganhou o respeitado prêmio literário José Saramago, com o romance "Nenhum olhar".
Suas obras têm sido citadas em publicações internacionais de renome, entre as quais, The Independent, El País e Le Monde. 

A pessoa certa...

Autor: Álvaro Álvares de Faria


A pessoa certa atravessa
A rua com seu terno branco,
Gravata de seda italiana.
A pessoa certa, executiva de si mesma, atravessa a praça
Com sapatos pretos, meias de náilon norte-americanas.
A pessoa certa entra no prédio, recolhe dinheiro,
Cola na pasta, pega o elevador. A pessoa certa
Atravessa o hall e chega à porta giratória. A pessoa certa põe o pé na calçada
E cai fulminada sem saber por quê.

Sobre Álvaro Álvares de Faria
Jornalista, poeta e escritor, participa de mais de 70 antologias de contos e poesia publicadas. Foi ganhador de alguns dos mais importantes prêmios literários do país com sua poesia. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A moça de piercing

  Francisco sentou-se em sua poltrona. Era uma curta viagem, seriam apenas 40 minutos ligando uma cidade a outra. Retirou de sua mochila um grosso volume de A República de Platão, Faltavam 5 minutos para o ônibus sair. Ao ouvir o barulho do motor do ônibus, entra uma moça no ônibus, linda, completamente linda.
   Ela se senta ao lado de Francisco, diz "Boa tarde", Francisco lhe retribui a saudação. A moça coloca os fones, inclina a sua poltrona e fecha os olhos.
   Francisco a olha para a moça de cima até os pés. Logo, já pode supor o distinto leitor, Platão deixou de ser o objeto das atenções de Francisco. Começa ele a pensar quem seria aquela garota, o que fazia da vida e até mesmo como ela seria na cama.
    Em seus devaneios, Francisco vê um piercing no nariz da moça. Ele nunca em sua vida havia namorado, ficado ou transado com uma moça de piercing. Mas algo ele sabia por intuição. "Mulheres com piercing são um estouro".
    Perdõe caro leitor pelas gírias e pensamentos conservadores de Francisco, mas ele tinha mais de 50 anos e era um homem profundamente conservador, embora nunca tenha casado e nem tido filhos. As gírias de Francisco e seu entedimento do mundo torna uma conversa entre ele e um adolescente completamente ineficaz.
    Voltando à narrativa.
    Os devaneios de Francisco começam a tomar a sua mente. Várias perguntas começaram a intrigá-lo, primeiramente se ela só teria aquele piercing ou se por acaso ela teria outros e onde seriam esse piercings, em segundo lugar ele começou a imaginar o que essa garota estaria ouvindo em seu IPOD, o que ela fazia da vida e principalmente se ela honrava a fama das mulheres de piercing.
    Ele pensava, pensava e A República de Platão ia ficando de lado.
    De repente a moça de piercing acorda e olha para Franciso.
   - Olá estranho! - disse a moça imitando uma fala da Natalie Portman no filme Close.
   - Oi - responde Francisco monossilábico.
   - Você gosta de Platão?
   - Sim - agora além de monossilábico Francisco treme e começa a suar frio.
   - Adoro esse livro, embora discorde profundamente do livro X, penso na poesia de outra maneira ... - e vai discorrendo sobre A República, mostrando entender do assunto.
   - Pera aê -  o mundo de Francisco parou para ele descer - Você lê livros?
   - E por que não leria? - pergunta a moça com espanto.
   - O que você está ouvindo? - Francisco continua o questionário.
   - Bom, você é estranho mesmo. Estou ouvindo a 8ª sinfonia de Mahler segundo movimento.
   - Hã?
   - O que eu tenho de estranho?
   - Nada - responde Francisco com a mente dando um nó - Mas então o que mais você gosta de ler?
   - Posso declamar Fernando Pessoa para você!
   - Sério?
   - Vou descer daqui antes da rodoviária e dormir em um motel na estrada, posso te ensinar "O Guardador de Rebanhos" se você quiser me acompanhar.
   Francisco emudeceu e acompanhou a moça e teve a melhor noite de sua vida.
   Muitas de suas perguntas de Francisco foram respondidas naquela noite, principalmente a sua dúvida sobre os piercings, ele descobriu mais dois um no umbigo e outro para aguçar a imaginação do leitor.
 

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Morre um Gênio! Valeu Steve!

   E lá se foi Jobs!
   Quem pensa que apenas a Apple perdeu está enganado. Todos perdemos, a humanidade perde alguém que pensava a forma que vivemos, ouvimos música, lidamos com a mídia, lemos livros, acessamos a internet e principalmente construiu uma ponte que ligou a humanidade ao universo da informática.
   Ouça este podcast e vc entenderá melhor.
   http://jovemnerd.ig.com.br/nerdcast/nerdcast-280-steve-jobs-stay-hungry-stay-foolish/

   Veja este vídeo.
   http://www.youtube.com/watch?v=JdmJEwO5qiE

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Estamos virando uma nação de imbecis!

   Chovem notícias que estão me deixando de saco cheio. Todos, repito, todos os sites de notícias noticiam sobre a tal píada do Rafinha Bastos, sobre uma propaganda com a Gisele Bündchen de roupa íntima e agora sobre um quadro do Zorra Total, que estão querendo tirar do ar.
    Estamos perdidos. Até o Zorra está sofrendo críticas por um de seus quadros!
    Já tive a infelicidade de perder meu precioso tempo vendo o referido quadro, não é tão engraçado, mas supera a média do que é produzido no programa. Porém, o quadro é de uma inocência enorme e não há o que se criticar do ponto de vista moral, legal e ético.
    Afirmam que o quadro incentiva o abuso de mulheres dentro dos metrôs. E eles estão sendo endossados por uma tal ministra que ninguém sabe o nome e é responsável por uma das pastas mais insignificantes do Planalto.
    Essa mesma tal ministra (nem me darei ao trabalho de pesquisar seu nome), também é a responsável por pedir que seja retirada a propaganda da modelo Gisele Bündchen. Segundo eles, a propaganda é sexista e diminui a mulher.
    Ora pois, a propaganda parece um desses anúncios década de 70 e é completamente incrível pensar que, em pleno 2011, uma propaganda estaria sendo censurada pelo governo. Acho que já evoluímos o suficiente para discernir machismo de humor. Segundo a dita ministra não.
     E pensar que a desgraçada da ministra recebe um baita salário vindo do nosso bolso.
     Por fim, tem a tal piada do Rafinha Bastos.
     Só digo uma coisa, se a piada fosse sobre uma pessoa pobre ou desconhecida, nada aconteceria. A Band é uma emissora de rabo preso, haja visto a punição ao humorista.
     Quem conhece e gosta do trabalho dele desde antes do CQC (meu caso), sabe que ele faz humor daquele jeito, se não queria um humorista polêmico, bastava contratar um grupo de humorístas da turma do Marco Luque (sem a menor graça) e fazer um Casseta & Planeta piorado.
      Na boa, uma emissora que valoriza uns caras que nem o Neto e demite ao vivo o Kajuru, não merece o meu respeito.

      Moral da história o Brasil está cada vez mais retrógrado e se não abrirmos nossas mentes, nosso país se tornará uma nação de imbecis.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Quem disse que precisamos de palavras

   Acabo de assistir ao melhor filme de comédia que já vi na vida.
   Tempos modernos é mais que um filme, mas uma clara leitura do mundo industrial e da sociedade de consumo. Nele Chaplin vive um de seus principais personagens, que é o Vagabundo, a cada cena Chaplin mostra em cenas bastante claras as consequências das mudanças que o mundo estava vivendo e mostra in loco a efervescência de seu tempo.
   Sem querer estragar o prazer de quem não viu o filme, limitar - me- ei  a comentar minhas impressões sobre esta obra de arte.
    Primeiramente, a de se destacar o trabalho genial da trilha sonora, que além de envolvente diz ao expectador o exato sentimento de cada cena feita. Além disso o filme possui uma fotografia extraordinária, possuindo lindos cortes de cena e uma edição perfeita.
    Não há o que se dizer o gênio de ator que foi Charles Chaplins, fico a imaginar se não foram as palavras ditas nos filmes mais modernos que estragaram tudo, talvez não. Mas essa sensação fica depois de ver a feição de Chaplin e de sua colega de cena ( e esposa na vida real) Paulette Goddard, que além de terem uma sincronia maravilhosa, atuam de modo onde as palavras são desnecessárias.  Embora Paulette posteriormente tenha atuado em filmes falados, tais como "O vento levou".
    Minhas palavras estão fora de sincronia. Somente posso dizer que "Tempos Modernos" apesar de preto e branco, apesar de ser da era do cinema mudo, é moderno, atual e sua temática servirá para reflexão da humanidade por longas eras.
    Assim surgem os clássicos e Chaplin no cinema, sem dúvida é o maior de todos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Humanidade e Economia - em busca da objetivação de sua existência

   O modo econômico de uma sociedade possui suas entranhas operacionais no modo vida adotado por aquela sociedade. Pois o homem não é um ser econômico e sim um ser social, embora em todas as eras, o ser humano buscou sempre uma maneira de organizar suas trocas, essas formas sempre foram visando a manutenção e a sustentabilidade da sociedade, seja essa sociedade uma família, uma tribo e até mesmo uma sociedade organizada.
   Esse argumento se baseia em evidências antropológicas de que o ser humano possua uma natureza eternamente maximizadora e que instintivamente procuraria o lucro, visão essa, limitaria o homem a um simples agente do modo de produção capitalista. Mas esse modo de produção não nasceu com a humanidade, tão pouco é historicamente inerente sociedade.
   O indivíduo como ser social sempre se preocupa com o seu status quo dentro do grupo social que está inserido. Exemplo disto, é a diversa gama de sociedades que surgiram sem a presença do elemento riqueza, onde a noção de ganho é lucro completamente desconhecida.
    Estas sociedades criam formas de desenvolvimento de suas trocas baseados em vários elementos, como cita Karl Polanyi em seu capítulo 4 do livro A Grande Transformação, como por exemplo a reciprocidade e a redistribuição.
   Entende-se a partir dos estudos de sociedades, como a das Ilhas Trobriand, que possuem suas trocas baseadas em um sistema religioso complexo e conseguem a partir do princípio da reciprocidade gerar a subsistência abundante de todo um arquipélago. Baseando-se neste exemplo e no exemplo de outras sociedades, possível afirmar que a presença de elementos religiosos guiando o modo de desenvolvimento da economia e raramente o contrário, o homem como ser social e interdependente possui em sua estrutura ideológica as raízes que norteiam suas escolhas e aqui entram os princípios religiosos e cabalísticos. Essas formas de organizações ideológicas fornecem ao indivíduo subsídios para desenvolvimento de sua forma de enxergar sua vida em sociedade e por conseguinte a forma de reproduzir e objetivar sua existência.
  Porém seria limitado demais atribuir apenas religião este papel, mas a cultura como um todo cria laços para desenvolvimento de pares de comportamento. Esta cultura se manifesta na filosofia (que se confunde com a teologia em diversas sociedades), nas artes, na educação, no folclore, enfim em todos os elementos que constituem o espírito humano.
   A criação de laços sociais geram então uma simetria e uma centralidade nas trocas, o que irá gerar pares econômicos gerais. Estes pares se sustentam sobre a reciprocidade e sobre a forma em que os laços sociais são construídos. Quanto mais fortes os laços sociais criados, maior a efetividade dos sistemas sociais criados.
   Sendo assim o ser humano não tem, como característica natural, o desejo pela maximização, mas sim, essa característica socialmente criada por fatores sociais, que o levarão, de uma forma ou de outra a buscar e pensar capitalsticamente. E assim como o pensamento e o espírito capitalista foram criados socialmente, também podem ser socialmente destruídos, afinal, não são formas de vida naturais e sim sociais.

   Conclui-se então, por mais absurdo que aos nossos olhos capitalistas isso possa parecer, que o capitalismo, apesar de entranhado no sociedade moderna, não é e nem pode ser uma característica da alma humana, mas sim, uma escolha do ser humano.
   Escolha esta que possui suas conseqüências, e assim como tudo que o ser humano produz possui a capacidade de se tornar historicamente obsoleto.
   Como todas as sociedades e impérios historicamente construídos, o capitalismo também irá cair.

Fenômenos sociais e autonomia da esfera econômica

    Nigel Dodd em “A sociologia do dinheiro”, busca a explicação das relações sociais que fazem parte do universo das trocas monetárias e do universo objetivo do dinheiro. Ao contrário do que se normalmente pensa o dinheiro é bem mais que um facilitador de trocas, substituindo o escambo. Mas o símbolo de uma cadeia de fenômenos sociais que lhe atribuem valor e servem para além das trocas.

   O dinheiro precisa ser muito mais do que o citado acima, mas deve também ser unidade de conta e uma reserva de valor. Ou seja, o dinheiro além de ser quantificado pode também ser guardado e sendo guardado ele deve permanecer com o mesmo valor. Outra característica fundamental do dinheiro é que ele deve possuir liquidez, ou seja, deve poder ser trocado por qualquer mercadoria a qualquer momento, desde que esteja em uma unidade de valor compatível com a mercadoria a ser adquirida. O valor desse dinheiro é construído socialmente, o que faz com que o seu valor permaneça constante é uma rede que funciona na base da confiança. 

   A grosso modo, o indivíduo troca uma mercadoria por dinheiro e isto inclui sua força de trabalho, por confiar que este dinheiro possui liquidez, ou seja, possa ser trocado por bens e serviços necessários para sua  subsistência. Uma vez quebrada esta confiança, ou seja, perdas do valor líquido do dinheiro a sociedade entra em colapso social. 

   Partindo desse ponto, o mais importante no estudo do Dodd sobre o dinheiro, é entender que o dinheiro possui uma eterna função social, ou seja, a função de ponte entre as relações sociais mercadológicas, como objeto de manifestação da confiança dos indivíduos nas relações sociais mercadológicas instituídas. Ou seja, objeto de confiança do indivíduo em uma entidade anônima.

   Uma das razões das crises no sistema capitalista são mostras da quebra da confiança e da perda do valor real monetário ao longo de um determinado evento histórico. Exemplo disto é o fato da desvalorização da libra esterlina na economia européia (citado no texto) ou até mesmo a recente crise econômica internacional do subprime, que apresenta dois fatores interessantes.

   O primeiro fator foi a manifestação de uma nova forma para o dinheiro, forma essa que eram os títulos da dívida do mercado subprime. Esses títulos sofreram uma valorização extrema a princípio, atraindo investidores e criando uma espécie de “bolha”. Quando de repente não houve mais sustentabilidade para o valor desses títulos e então ocorreu a desvalorização desses papéis, houve consequentemente, uma perda de liquidez semelhante apenas ao crack de 1929. Este foi o estopim para a manifestação do segundo fator determinante para a crise.

   A falta de confiança nas instituições responsáveis pela gestão do dinheiro, o que levou os investidores a “segurar” seu dinheiro gerando um efeito o qual somente ações governamentais de socorro a essas instituições seriam capazes de salvá-las.

   Conclui-se então que todas as manifestações do dinheiro em nossa sociedade existem a partir de uma relação social de confiança, que se estabelece a partir da liquidez da moeda vigente. Sem essa relação liquidez x confiança, os modos de troca tornar-se-iam completamente descaracterizados, remontando às trocas via escambo. Daí a necessidade de se entender as questões econômicas além de uma esfera quantitativa e mercadológica, sendo este o objeto de questionamento de Ricardo Abramovay em seu texto. Afinal, segundo ele, “Toda ênfase está no conhecimento do mercado como mecanismo de formação de preços e, portanto, de alocação de recursos a partir de dos quais uma sociedade se reproduz e se desenvolve.”

   Não cabe mais a atual ciência econômica uma análise sem levar em consideração os fatores sociais que levaram os elementos a agir dessa ou daquela maneira. Segundo Ronaldo Coase “os economistas contemporâneos interessam-se apenas pela “determinação dos preços de mercado”, mas a “discussão sobre a praça de mercado (market place) desapareceu inteiramente”.
Entende-se então o papel fundamental da Sociologia Econômica como ciência fomentadora de uma análise econômica mais humanizada e mais próxima da efetiva realidade. Essa realidade que é construída não no mercado, mas além do mercado. Precisamente o mercado existe a partir de relações sociais anteriores ao mercado.
   O mercado de trocas surge como meio de objetivação das necessidades humanas, necessidades que são diversas e socialmente criadas. Logo, anterior a necessidade há uma relação social. Sendo assim, todas as trocas são mediante fenômenos sociológicos e anteriores à expectativa econômica.
    Voltando ao texto de Nigel Dodd, o dinheiro surge então como meio social de representação de uma unidade de valor que simboliza o que socialmente vale determinado item. Sendo assim, somente é possível explicar plenamente os fenômenos econômicos, tendo como base a análise da sociedade.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Fazer aniversário já não é tão legal

Francisco não conseguia dormir. As horas da madrugada passam lentamente, ele não se importa, o sono já se foi a muito tempo e a chuva cai. Sua televisão está estragada, Franciso tem apenas uma pilha de livros nunca lidos e um rádio velho.
A madrugada se adentrava, Franciso completava 30 anos de idade. Anos mal vivídos, mas não faltou esforço da parte de Francisco, ele sempre trabalhou muito, estudou, pensou sobre a vida, gastou dinheiro, guardou dinheiro, amou, desamou, odiou, esqueceu, lembrou, aprendeu e hoje, por algum motivo, está só.
O vazio no peito de Francisco era gigante, pensou em beber, mas só tinha uísque barato. Pensou em sair, mas a chuva o desanimou. Pensou em se matar, mas perdeu a coragem.
Ele resolveu então esperar. Esperou a noite inteira. Pegou no sono. Amanheceu.
O sol incomodou a retina de Francisco, ele acordou desajeitado. As costas dele doíam, dormiu muito mal e acordou pior ainda. Tinha de trabalhar. Tomou um café amargo e foi ao trabalho.
Chegando no escritório em sua mesa havia um cartão havia um cartão de "Feliz Aniversário!" da empresa para ele. Apesar disto, ninguém o abraçou.
Abriu os seus emails e duas pessoas lhe mandaram mensagens de aniversário. Francisco, respondeu agradecendo, mas sem muitas palavras. Uma lágrima escorre do rosto dele e ele se levanta.
Do alto de seus 30 anos, Franciso aprendeu a chorar!

Übermensch

Nietzsche, sem dúvida, foi um dos homens mais polêmicos de seu tempo. Ele é o autor de obras que marcaram o nosso tempo, tais como, "Assim falou Zaratrustra", "Além do bem e do mal", "Humano demasiado humano", dentre outros. Uma de suas várias contribuições foi o conceito do Übermensch, em português "além homem" ou super homem.
O Übermensch é uma ideia que tipifica o homem que vai além das paixões humanas, da compaixão, do medo e da mediocridade. Este homem seria o grau maior da experiência humana.

Segundo Nietzsche, houve um tempo que certos homens dominavam sobre os demais pela força, inteligência, coragem e liderança. Estes homens naturalmente dominavam sobre todos os demais.
Porém alguns dos homens dominados pelo Übermensch não gostaram muito da ideia. Eles criaram então uma maneira de destruir o Super Homem, os mediocres encontraram a Kriptonita.
Essa Kriptonita carrega consigo a marca do pecado e da compaixão. Essa Kriptonita pode ser manifesta através de várias vertentes, uma delas é a da religião.
Segundo Nietzsche, o cristianismo gera nas pessoas a esperança pelo porvir e a compaixão pelos pobres e fracos, além de enaltecer a simplicidade ante e a frugalidade.
Para ele o cristianismo é altamente pernicioso para a humanidade e os valores da religião impedem o homem de chegar a um nível superior de existência.
O mais interessante dessa visão é o fato de que o Übermensch não é um homem simplesmente forte ou especialmente dotado, a exemplo do super herói americano. O Übermensch é uma evolução de tudo aquilo que impede o ser humano de progredir além de suas perspectivas.
O Übermensch é um devir constante, que se enxerga como algo que está para acontecer.
Ser Übermensch não é ser super herói, mas ser anti-mediocridade e sem esperança para os que não alcançam tal condição. Nietzsche era um gênio!

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Frases de Nelson Rodrigues

Goste dele ou não Nelson Rodrigues, foi um dos maiores gênios de nossa dramaturgia, crônica jornalística e literatura.
Abaixo algumas frases de quem não sou digno de escrever sobre



O brasileiro é um feriado.

Os asmáticos não traem.

Mulher gosta é de apanhar, só as neuríoticas reclamam.

Nossa ficção é cega para o cio nacional. Por exemplo: não há, na obra do Guimarães Rosa, uma só curra.

Não reparem que eu misture os tratamentos de tu e você. Não acredito em brasileiro sem erro de concordância

Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma

Só o inimigo não trai nunca.

Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.

Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.

Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.

O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca

Não admito censura nem de Jesus Cristo

Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha senso moral

Um Garrincha transcende todos os padrões de julgamento. Estou certo de que o próprio Juízo Final há de sentir-se incompetente para opinar sobre o nosso Mané.

A dúvida é autora das insônias mais cruéis. Ao passo que, inversamente, uma boa e sólida certeza vale como um barbitúrico irresistível.

Toda coerência é, no mínimo, suspeita.

A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: – o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.

Toda a história humana ensina que só os profetas enxergam o óbvio.

Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.

No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.

A morte de um velho amigo é uma catástrofe na memória. Todas nossas relações com o passado ficam alteradas.

Não ama seu marido? Pois ame alguém, e já. Não perca tempo, minha senhora!

A verdadeira grã-fina tem a aridez de três desertos.

No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal.

Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.

Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é um orçamento.

Enquanto um sábio negro não puder ser nosso embaixador em Paris, nós seremos o pré-Brasil.

Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos mais jovens: – não façam literatice. O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra.

Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: – a nossa.

Desconfio muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro do erro e da obtusidade.

Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista

Eu sou BBB-, Você é BBB-

Mais uma vez reproduzo aqui uma coluna de Diogo Mainard, que, antigamente era o colunista mais lido e polêmico do Brasil e hoje não escreve mais. Até onde eu sei!

Gilberto Freyre chegou perto. Bem mais perto do que Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Em todas as suas obras, eles se dedicaram a interpretar o Brasil. Mais do que isso: eles se empenharam em definir o Brasil. E fracassaram. Quem finalmente realizou o feito foi a Standard & Poor’s. Seus analistas acabam de definir o Brasil como BBB-. O país cabe inteirinho nessa nota. Pode jogar fora aquela sua cópia surrada de Casa-Grande & Senzala. O debate nacional está encerrado. O Brasil é BBB-. Eu sou BBB-. Você é BBB-. Um dia, com certa dose de sorte, poderemos nos tornar BBB+.
Pelos critérios da Standard & Poor’s, o Brasil é um bom pagador. O fato de ser classificado como BBB- equivale a ter o próprio cadastro aprovado no crediário do Ponto Frio. Já dá para comprar um freezer a prazo no mercado financeiro mundial. Depois de obter o reconhecimento internacional, o Brasil foi tomado por uma onda de euforia. O assunto contaminou todos os debates. Um professor de medicina da Universidade Federal da Bahia declarou que o batuque do Olodum é um exemplo de primarismo musical. O presidente do Olodum reagiu comparando-o a Adolf Hitler, e acrescentou que o grupo, como o Brasil, tem sua “qualidade reconhecida internacionalmente”. Isso significa que, numa hipotética Standard & Poor’s da música, o primarismo do Olodum estaria na categoria BBB-.
Se o risco de tomar um calote por aqui diminuiu, o risco de tomar um tiro na testa continuou igual. No mesmo dia em que os jornais comemoravam o BBB-, conferido pela Standard & Poor’s, O Globo publicou uma reportagem sobre os 18.000 cadáveres recolhidos todos os anos das ruas do estado do Rio de Janeiro. Em média, cada cadáver demora sete horas para ser recolhido pelo Corpo de Bombeiros. Esse também é um bom critério para classificar os países: o grau de naturalidade com que se relatam os horrores cotidianos. Em 23 de abril, O Globo deu a seguinte notícia, escondida numa página interna, num bloco de 7 por 7 centímetros:
“Parte do corpo de uma mulher foi queimada ontem em plena Avenida Brasil, na altura de Guadalupe. Segundo testemunhas, homens trouxeram o corpo da Favela da Eternit. A mulher teve cabeça, braços e pernas arrancados. O tronco, então, foi colocado dentro de pneus para que os bandidos ateassem fogo”.
Depois disso, nada mais. A mulher esquartejada e incinerada sumiu do noticiário. Ninguém se espantou com sua morte. Ninguém tentou interpretá-la. Pode jogar fora seu Gilberto Freyre. Pode desmembrá-lo, colocá-lo dentro de pneus e atear-lhe fogo. O Brasil é ainda mais rudimentar do que ele supunha. Nosso primarismo é ainda mais bestificante. Aqui só resta um Olodum mental, um dum-dum-dum mental.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Famigerado

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias" de Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13, cuja compra recomendamos.

Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:

— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Se sério, se era. Transiu-se-me.

— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

— Famigerado?

— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...

— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...

— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...

— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

Chega de Drummond

Texto de Diogo Mainard, publicado pela VEJA 13 de novembro de 2002. Não reflete exatamente como penso, mas mostra um pouco da pieguice da intelectualidade brasileira.

"João Cabral me alivia da pieguice
de Drummond, de seu sentimentalismo
ginasiano, de seu lirismo kitsch. Mas não
há o que fazer contra sua prosa. Ali ele
aparece em toda a sua constrangedora
banalidade, com aquelas historinhas jecas"


Drummond, Drummond, Drummond. Para onde quer que se olhe, Drummond e mais Drummond. Em Copacabana, celebraram seu centenário com uma estátua. Em Piracicaba, roubaram uma sua caricatura. Em Itabira, sua cidade natal, crianças foram obrigadas a declamar seus versos para os turistas. Pelé gravou um CD com suas poesias. Luiz Felipe Scolari citou-o em suas memórias. Uma moeda foi cunhada com sua efígie. Ele inspirou espetáculos de dança e foi mencionado em receitas de tutu à mineira. Até Lula apareceu com seus livros debaixo do braço. Com ar doutoral, disse que ajudavam a prepará-lo "espiritualmente" para a Presidência.

Foi tanto Drummond que acabei enjoando dele. Basta ouvir seu nome que começo a tremer e a suar frio. O antídoto mais eficaz contra essa ressaca de Drummond é uma dose maciça de João Cabral de Melo Neto. Leio-o todos os dias. Alivia-me da pieguice de Drummond, de seu sentimentalismo ginasiano, de seu lirismo kitsch: "Amor é estado de graça", "Amor foge a dicionários", "Amor é primo da morte". Quer mais? "O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar", "Quem tem amor tem coragem", "O amor bate na aorta". Ainda mais? "Amar é o sumo da vida", "Amar se aprende amando", "Vamos conjugar o verbo sempreamar".

Se João Cabral de Melo Neto atenua os efeitos nocivos da poesia de Drummond, não há o que fazer contra sua prosa. Ali ele aparece em toda a sua constrangedora banalidade, com aquelas historinhas jecas sobre o Dia das Mães, sobre o Dia dos Namorados ou sobre os velhos bares no interior de Minas Gerais. Numa crônica de Natal, ele sonha com o dia em que o "mundo será governado exclusivamente por crianças". Numa crônica em homenagem a Chico Buarque, escrita em 1966, ele proclama que nunca foi da Arena ou do MDB, mas "desse partido congregacional que encontra na banda o remédio". Quando convinha ser de esquerda, porque todos os poetas o eram, Drummond fazia poesia de esquerda. Quando o clima piorou, e os esquerdistas começaram a ser perseguidos pela ditadura, ele achou melhor pular fora, escrevendo sobre minúsculos acontecimentos do dia-a-dia. Aquilo que foi pomposamente apelidado de metafísica do cotidiano. Ou seja: nem Arena, nem MDB.

Nos manuais de literatura, Drummond é louvado por sua ironia. É uma ironia amável, benévola, cúmplice, que se esforça para confortar e apaziguar, sem jamais correr o risco de ferir o leitor. De fato, ele é prevalentemente auto-irônico. Ironizando a si mesmo, Drummond evita atacar o próximo. A auto-ironia, porém, é sempre um exercício de falsa ironia. Em 1930, quando se define um "gauche", ele demonstra ser tudo menos um "gauche", usando muita astúcia e habilidade para conquistar seu espaço no ambiente literário nacional. Mais tarde, quando julga "insignificante" seu poema mais famoso, "No meio do caminho", ele tem a certeza de que ninguém irá concordar. A seguir, quando ironiza sua frivolidade, seu provincianismo, sua teimosia em tratar de assuntos menores, ele sabe que está num terreno seguro, tendo sido aclamado por causa disso pelos maiores críticos do país.

Chega de Drummond. Pelos próximos dez ou quinze anos, é melhor ficar longe dele.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Dia de fúria reprimido

Raul acordou puto da vida, não sabia o porquê, mas seu dia começou mal assim que saiu da cama.
Ele tinha um emprego de merda, não cito nessa crônica para não ser processado pela categoria. Só sei que se tivesse esse emprego também acordaria nervoso só de saber que tenho de trabalhar.
Quando pôs os pés em seu trabalho sentiu um mal pressentimento.
Foi demitido!
Motivo?
Corte de gastos
Raul voltou mais puto ainda para casa.
Entrou em um fast food e pediu o maior sanduíche do cardápio. Quando chegou o sanduíche, ele abriu a caixinha e foi aquela surpresa. Raul se lembrou do filme Um dia de fúria com Michael Douglas e sentiu vontade de imitá-lo, mas Raul era covarde demais para levantar a voz a uma garçonete e reclamar com o gerente a sua insatisfação.
Comeu, pagou e saiu.
Foi andando para casa e de repente começa a chover. Raul estava sem guarda chuvas. Um carro passou por ele e lhe jogou uma enorme poça d´água, deixando Raul em uma situação constrangedora e ficou mais puto da vida ainda.
Enquanto gritava impropérios para o motorista que lhe molhou, veio um trombadinha e roubou-lhe a carteira.
Pronto, fudeu!
Raul estava molhado, sem grana, sem documentos e desempregado.
O telefone de Raul toca. Sua ex-mulher lhe cobrando a pensão.
O dia de Raul realmente estava uma merda!
Pra terminar este texto fudido e esta história sem graça, Raul atravessa a rua sem olhar e um ônibus lhe acerta em cheio.
Raul fica estatelado, destruído e completamente desfigurado. Mas Raul era tão patético que nem morrer ele sabia. Trinta minutos depois Raul estava lúcido e morrendo de dor, sentindo-se um merda em um hospital do SUS e esperando a enfermeira lhe dar mais um sedativo.