Autor: Fernando Pessoa
Vem, Noite antiquíssima e idêntica. 
Noite Rainha nascida destronada, 
Noite igual por dentro ao silêncio.
(...)
Vem soleníssima, 
Soleníssima e cheia 
De uma oculta vontade de soluçar, 
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena, 
E todos os gestos não saem do nosso corpo, 
E só alcançamos onde o nosso braço chega, 
E só vemos até onde chega o nosso olhar. 
(...)
Vem, dolorosa, 
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, 
Das Tristezas dos Desprezados. 
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes. 
Sabor de água sobre os lábios secos e Cansados. 
Vem, lá do fundo 
Do horizonte lívido, 
Vem e arranca-me 
Do solo de angústia e de inutilidade 
Onde vicejo. 
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, 
Folha a folha lê em mim não sei que sina 
E desfolha-me para teu agrado, 
Para teu agrado silencioso e fresco. 
Uma folha de mim lança para o Sul, 
Onde estão os mares que os Navegadores abriram; 
Outra folha minha atira ao Ocidente, 
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro, 
Que eu sem conhecer adoro; 
E a outra, as outras, o resto de mim 
Atira ao Oriente, 
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, 
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,  
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta, 
Ao Oriente que tudo o que nós temos, 
Que tudo o que nós não somos, 
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva, 
Onde Deus talvez exista realmente e mandando em tudo... 
(...)
Vem, cuidadosa, 
Vem, maternal, 
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste 
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas, 
E sorriste porque tudo te é falso e inútil. 
Vem, Noite silenciosa e extática, 
Vem envolver na noite manto branco 
O meu coração...
Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935) nasceu em Lisboa. Considerado um dos mais 
importantes poetas modernistas. Criou heterônimos famosos como Alberto 
Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.
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