sábado, 24 de outubro de 2015

Esperando Foucault

     Estava lendo um livro de Antropologia, cara, isso é do caralho. Então ouvi alguém bater à minha porta. Não costumo receber visitas, principalmente sábados. Todos vivem muito aos sábados, conversam com muita gente, fazem planos e programas, eu não. Finco minhas nádegas em uma poltrona e leio aforismos. A vida é um martelo aos sábados.
     Atendi e a pessoa que se apresentou era estranha, nunca vi o sujeito em minha vida e, como sou muito desconfiado e precavido, o mandei entrar e lhe servi um chá preto e biscoitos.
     Olhei para o ser e este ser me olhava, seu olhar era um veredito kafkiano e não entendi o que ele fazia em minha casa, até que ao romper do silêncio o homem desanda a me dar informações altamente irrelevantes sobre sua vida pregressa, seu tipo sanguíneo, sua saúde e algumas alergias, passando por seu passado sexual, onde o mais interessante era uma gonorreia contraída na juventude, depois de um devaneio sexual com uma moça de vida sexual levada ao limiar do profissionalismo, mas sem os devidos cuidados.
      Não entendia o porque das informações, então comecei a ouvir suas ideias sobre como o governo, o sistema e o capital nos dominavam e suas predileções políticas.
      Em meio ao inflamado discurso, listou uma série de atividades que teria de executar no dia seguinte e fiquei a me perguntar o que raios ele fazia na minha casa, até que ele solta um grito meio louco, meio racional.
      - Vim até aqui, pois estou esperando Foucault!
      Olhei fixamente para o distinto senhor e lhe dei um soco no estômago.
      - O senhor é maluco - Disse-lhe guardando alguma docilidade.
      - Não sou! Sei que parece estranho, mas o estou a esperar e aqui é melhor lugar para isto.
      Como qualquer pessoa sensata faria em meu lugar, olhei para aquele senhor, me sentei ao seu lado e me pus a falar aforismos.
      A noite passou e Foucault não chegou. Enfim, devia estar ocupado pensando no biopoder ou algo assim. O homem se foi e nunca mais apareceu, talvez tenha encontrado com ele em algum lugar diferente do combinado, o Waze deixa a gente perdido de fez enquanto.
      Voltei para meu livro de Antropologia. Cara, Antropologia é do caralho!
 

sábado, 10 de outubro de 2015

Tempos perdidos de uma natureza morta

Joaquim vinha de mais uma dessas passeatas que falam de comunismo no Brasil, foro de São Paulo, redução da maioridade penal, gayzismo, enfim essas merdas todas. Sua camisa da Seleção Brasileira estava encharcada de suor, mas sua alma carregava uma certa sensação de dever cívico cumprido.
No meio do caminho Joaquim olha para os lados e vê dois homens se beijando de forma um tanto quanto inflamada, não pestanejou e gritar vitupérios ao apaixonado casal.
Os jovens não se importaram, como dizem os antigos, não deram pelota para os xingamentos de Joaquim. Obviamente nosso amigo reacionário ficou altamente ofendido, pois suas ofensas deveriam ofender e, uma vez que o ofendido não se portou como tal, praticou ofensa reversa, num processo de raciocínio lógico que deixaria um par de matemáticos e filósofos debatendo por três semanas.
Os beijos permaneciam ardentes e a bandeira que Joaquim usava, a qual continha os escritos com letras garrafais, "Bolsonaro Presidente", começou a servir-lhe de toalha para sua excessiva sudorese.
O casal pensava em nada naquele momento. O leitor deve saber do que estou falando, se não sabe, tenho pena de você.
Criou-se então uma tela dantesca de uma natureza morta, um casal que não via o mover do tempo, pois estavam a exercer o mútuo amor e um homem que aos berros exercia seu ódio infeliz,
A cena assim permaneceu por longos 15 minutos, onde os beijos ocorreram a contragosto do litigante e Joaquim olhava para aquilo sem entender nada até que um rapaz passou de lado e viu a cena, 
O rapaz apareceu ao lado de Joaquim e começou a discutir com Joaquim. Ele também vinha da manifestação e defendia os mesmos princípios e valores. A conversa rendia lindamente, pareciam feitos um para o outro, viam o mundo da mesma forma, amavam as mesmas coisas, queriam as mesmas coisas e as semelhanças eram tantas que começaram a sentir uma incrível vontade de continuar a conversa em outro lugar.
Joaquim foi com o rapaz para um bar ali perto e começaram a tomar uma cerveja, enquanto isso, o casal que estava tão apaixonado começou a discutir por algum motivo desconhecido até pelo cronista desta história (lamento caro leitor).
Joaquim e o rapaz iam de vento e polpa, não paravam de rir, conversar e tomar cerveja.
O casal apaixonado foi embora brigado, tendo cada um tomado direção contrário do outro, com lágrimas em seus olhos.
Joaquim, sentiu seu coração dando uma pontada estranha, uma paz, um arrebatamento de sentidos muito estranho enquanto estava com aquele rapaz. Tratou logo de pagar a conta e ir embora o rapaz pediu o contato de Joaquim, ele inventou um número de telefone e um email que o tornariam impossível de se encontrar. Saiu correndo do bar e tentou encontrar o casal apaixonado.
Não os encontrou, obviamente, o leitor já deduziu isso.
Sentou-se na calçada e chorou. Suas lágrimas possuíam um estranho sentido, nunca dantes sentido.
O casal se encontrou no dia seguinte e resolveu seus problemas levando suas vidas da melhor maneira possível. O tempo perdido da noite anterior em meio a discussões e lágrimas foi maduramente superado.
Joaquim passou dias tentando entender seus sentimentos. Não conseguiu. Mas uma certeza carrega consigo, toda fez que ver um casal de homens irá gritar os mais altos e violentos xingamentos. Quem sabe ele encontra alguém parecido com o rapaz da noite anterior, afinal o antinatural precisa ser combatido, ainda que seja por uma natureza morta.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Selvática de Karina Buhr - Um disco urgente





O novo disco da excelente cantora Karina Buhr é um disco urgente para a cultura brasileira e para nossos tempos obscuros, onde, parece que tudo que cheira à brasilidade é ruim e banal, pelo menos nesse novo inconsciente coletivo de um conservadorismo cultural e político patético que tem assolado a mentalidade brasileira.
Especialmente na faixa que dá nome ao disco, Karina explora sons e formas que misturam um discurso político a uma musicalidade de altíssima qualidade.
E que discurso é esse?
O discurso de que precisamos nos olhar com novos olhos, buscar mais igualdade e respeito, lutar por uma sociedade melhor e mais respeito às mulheres, pois, apesar do que dizem por aí, ainda há muito, mas muito machismo em nossas terras,
Em tempos onde feminismo é tido como algo de "feias mal comidas", Karina tem a coragem de se desnudar artisticamente em sua obra e quem ouve Selvática com ouvidos minimamente sensíveis não pode sair como entrou, mas algo dentro de si tende a mudar.
Sem dúvida este é um dos melhores e mais importantes trabalhos musicais da década presente e ainda bem que temos ainda artistas do nível de Karina, pois nossa decadência intelectual ainda pode ser vencida.
Viva a Selvática.