Autor: Fernando Pessoa
Num meio-dia de fim de Primavera 
Tive um sonho como uma fotografia. 
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte 
Tornado outra vez menino, 
A correr e a rolar-se pela erva 
E a arrancar flores para as deitar fora 
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu. 
Era nosso demais para fingir 
De segunda pessoa da Trindade. 
No céu era tudo falso, tudo em desacordo 
Com flores e árvores e pedras. 
No céu tinha que estar sempre sério 
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer 
Com uma coroa toda à roda de espinhos 
E os pés espetados por um prego com cabeça, 
E até com um trapo a roda da cintura 
Como os pretos nas ilustrações. 
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe 
Como as outras crianças. 
O seu pai era duas pessoas - 
Um velho chamado José, que era carpinteiro, 
E que não era pai dele; 
E o outro pai era uma pomba estúpida, 
A única pomba feia do mundo 
Porque não era do mundo nem era pomba. 
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. 
Não era mulher: era uma mala 
Em que ele tinha vindo do céu. 
E queriam que ele, que só nascera da mãe, 
E nunca tivera pai para amar com respeito, 
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir 
E o Espírito Santo andava a voar, 
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. 
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. 
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. 
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu 
E serve de modelo às outras. 
Depois fugiu para o Sol 
E desceu pelo primeiro raio que apanhou. 
Hoje vive na minha aldeia comigo. 
É uma criança bonita de riso e natural. 
Limpa o nariz ao braço direito, 
Chapinha nas poças de água, 
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. 
Atira pedras aos burros, 
Rouba a fruta dos pomares 
E foge a chorar e a gritar dos cães. 
E, porque sabe que elas não gostam 
E que toda a gente acha graça, 
Corre atrás das raparigas 
Que vão em ranchos pelas estradas 
Com as bilhas às cabeças 
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo. 
Ensinou-me a olhar para as coisas. 
Aponta-me todas as coisas que há nas flores. 
Mostra-me como as pedras são engraçadas 
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus. 
Diz que ele é um velho estúpido e doente, 
Sempre a escarrar no chão 
E a dizer indecências. 
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. 
E o Espírito Santo coça-se com o bico 
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. 
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. 
Diz-me que Deus não percebe nada 
Das coisas que criou - 
"Se é que ele as criou, do que duvido." - 
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, 
Mas os seres não cantam nada. 
Se cantassem seriam cantores. 
Os seres existem e mais nada, 
E por isso se chamam seres." 
E depois, cansado de dizer mal de Deus, 
O Menino Jesus adormece nos meus braços 
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. 
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. 
Ele é o humano que é natural, 
Ele é o divino que sorri e que brinca. 
E por isso é que eu sei com toda a certeza 
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina 
É esta minha quotidiana vida de poeta, 
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre. 
E que o meu mínimo olhar 
Me enche de sensação, 
E o mais pequeno som, seja do que for, 
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo 
Dá-me uma mão a mim 
E a outra a tudo que existe 
E assim vamos os três pelo caminho que houver, 
Saltando e cantando e rindo 
E gozando o nosso segredo comum 
Que é o de saber por toda a parte ...
 
Sobre o autor:
Fernando Pessoa (1888 - 1935).
A versão na íntegra deste trecho pode ser encontrada nas obras completas
 de Alberto Caieiro - cap. VIII ou na sua "Antologia Poética" (Lisboa : 
R.B.A. Editores, 1994, p.124-129).
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