Afinal, as mulheres, meninas em sua maioria, são tratadas tal qual objetos de usufruto mediante ao fetiche provocado pelo "patrão", homem este que ostenta ouro, belos carros, bebidas caras e uma vida de completa loucura. Não é muito diferente dos roqueiros de antigamente, alguns eram (outros ainda são) extremamente bizarros e tratam as mulheres da mesma forma, senão pior, pois acrescentam o elemento violência.
O cerne da questão está no fetiche provocado pelo ouro e, principalmente, pela marca. Não importa o produto em questão, suas utilidades, características e atributos individuais, mas sim a marca, a qual o produto encarna em sua fronte. Este fenômeno tem sido visto e criticado por muitos intelectuais e estudantes de classe média, mas o que não se vê é que ele reflete aquilo que efetivamente somos enquanto sociedade.
Qual a diferença do funkeiro de ostentação para a mulher rica (aquela do reality show da Band)?
Existem diversas, vamos enumerar.
Primeiramente, o funkeiro descobriu nesta manifestação artística uma forma de fugir de uma realidade da qual não lhe é favorável, ou seja, escolheu a arte às drogas ou à criminalidade. Sim, ele escolheu a arte, ainda que seja esteticamente de gosto questionável, é tão legítima quanto uma música da Marisa Monte.
Em segundo lugar, estes artistas ainda sofrem um enorme preconceito perante a classe média esnobe do país. Todos que tiveram a sorte de ler Dostoievski e Virginia Woolf ainda na juventude, de todos que já puderam assistir a um concerto de música clássica, de todos que sempre gozaram da possibilidade de acesso à cultura de alto nível.
Porém, apesar destas inúmeras oportunidades, não as aproveitam como poderiam e nada produzem ao contrário dos referidos artistas do funk, que apesar de seu linguajar deficiente quanto a norma culta da língua e suas noções rudimentares de harmonia e ritmo, produzem uma arte que manifesta seus desejos e suas pretensões enquanto seres humanos.
O grande problema ao fim de tudo é que somos uma sociedade que idolatra o consumo, que faz disto um modus vivendi, que valoriza o ter em detrimento do ser e o funk ostentação é apenas mais uma das muitas manifestações dessa devastada sociedade do espetáculo.
Estou certo de que se Adorno estivesse vivo estudaria o funk ostentação e entenderia sua estética. Estou certo que este modo de fazer arte é um retrato fidedigno de uma geração perdida, mais perdida que o "Eu etiqueta" de Drummond.
EU ETIQUETA
(Carlos Drummond de Andrade)
Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.
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