quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

“CRÔNICA DA MORTE DE MINEIRINHO”, EM 1962, DE CLARICE LISPECTOR


É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por
que esta doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os
treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira
o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o
mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por
não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a
violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não
poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o
queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que
se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu
fria: 'O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era
criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu.' Respondi-lhe
que 'mais do que muita gente que não matou'.

Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de
que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não
quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para
mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de
segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me
cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no
nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o
nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me
assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto
isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa
funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a
minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu
devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia
ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos
acordem, e com horror digo tarde demais - vinte e oito anos depois que Mineirinho
nasceu - que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu
erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei
que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for preciso. Meu erro é o meu
espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi
a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a
lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele
viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência
inocente - não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai
não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do
outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A
violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança,pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus
olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um
homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de
lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e
cheia de desamparo e Mineirinho - essa coisa que move montanhas e é a mesma que o
faz gostar 'feito doido' de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão
estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma
grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma
em algo ameaçador - em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal,
é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha
água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi,
experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de,
com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus
é porquê adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um
doente do crime . Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um
homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa,
cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que
fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por
mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto
um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e
a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de
que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que
são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que
sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os
outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso,
sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar
não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo -
uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem
os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e
diamantes. Essa alguma coisa muita séria em mim fica ainda mais séria diante do
homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em
nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se
incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que
entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é
perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se
confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela
confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de
destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas
metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos
temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou,
ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça
prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que
mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si
própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo amaldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não
possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se
esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele
não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo
o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso -
nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem
as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de
perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

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